Do adágio ao andante quase allegro: composições em várias velocidades


Autoria: José Manuel Resende


Concluído o doutoramento em 2001, o que fazer? Eis a interrogação que atinge alguns de nós. Talvez seja uma interrogação com sentido menor. Neste caso não é porque inebriou o pensamento de quem o terminou naquele momento. Da inebriação vai-se dando o arrebatamento vagaroso. Como convém…

A confeção do doutoramento a solo foi penoso. O confronto entre a criação, as horas e os dias da sua preparação foi-se tornando insuportável. Na verdade criar algo dói fundo. Acompanha o prazer das coisas, dos odores, dos sabores.

Se os seus efeitos fossem levar a uma paragem infinita, o esperado rapidamente desfigura-se em relíquia. O trauma da solidão continuada é um murro no estômago.

O doutoramento transfigura-se em desejos, sonhos. Afastarem-se os sonhos dos devaneios são aspirações desejáveis. O perigo espreita em cada esquina porque desejar é fácil, concretizá-los é bem mais complicado.

Ao invés do esperado e não obstante o risco, as inquietações não sossegam. A quietude provável embate com a irrequietude de querer explorar outras maneiras de estar em ciência. É pouco provável a ciência avançar a solo. Fazer ciência requer uma composição. E compor ciência exige que essa arte de a fazer seja partilhada com outros.

Mas como? Sem plano, eis a questão! Aliás a fuga à planura é sedutora. As rugosidades das inquietudes são cativantes pelas adversidades promovidas pelos seus perímetros. Atravessá-las é aventura. É difícil o uso da bússola nestas andanças. Há um norte ainda indefinido, mas as incertezas marcam os passos. O adágio é o primeiro andamento de uma partitura que se pretende fazer. Começar é a arte da dificuldade. Quando se chega ao allegro?

A indefinição do norte é mais na forma. O conteúdo tem entorno porque derrama fratura face a uma maneira de pensar a ciência sociológica por terras lusas.

A investigação no doutoramento busca novas explorações analíticas e metodológicas induzidas pelo seu objeto. Enlameou-se devido ao modo como tinha sido inicialmente pensado. A empiria surpreende quem pensa, e não há outra volta a não ser procurar a revirada teórica.

As indagações críticas dos profissionais que ajuízam o seu ofício no contexto político autárcico é uma surpresa. Apesar de todas as determinantes estruturais estes atores arriscam pôr em causa os arranjos instituídos.

Sendo assim, o caminho atira-se ao lado instituinte dos modos de se fazer uma profissão. Alterado o mote primeiro, o percurso analítico é outro. Daquilo que os atores são capazes de fazer nas circunstâncias contingenciais que atravessam a profissão permeia agora o questionamento da tese.

O intento é prosseguir por aqui. O insuficiente é seguir só por este cantinho curto. Compor as artes de fazer uma profissão é continuar em voo de projeto. Quer-se mais, alargar o projeto com o intuito de se tecer um programa. Mas como pode ser isso possível? Sem plano é talvez o improvável a comandar o voo. E este foi-se fazendo, devagarinho.

Possível foi. Na plataforma está espelhada a história do coletivo. Os traços, os esboços deste programa começam a se esquiçar por volta de 2003/04. Ano após ano, jovens aproximam-se com o desejo de desenvolver o seu projeto de pesquisa. Alguns percorrem-no do mestrado ao doutoramento.

O que interessa ressaltar é que cada uma, cada um, pega no seu objeto singular sob o ângulo analítico antes mencionado. É certo que a estranheza é marca no seu manuseamento primeiro. Estranha-se porque o questionamento deixa de se fazer por um esforço dedutivo. O exercício é agora inverso. É induzido a partir das imersões no campo, no terreno da pesquisa.

A pouco e pouco, os exercícios interrogativos vão dando frutos. Não é por uma linearidade qualquer. Há um ir e vir. Há uma aprendizagem constante. É por isso que este é um programa aberto, contingente, que acompanha justamente estes futuros expostos ao incerto, ao contingente.

Nesta ainda curta história o coletivo é densamente alimentado por objetos plurais, oriundos de questionamentos diversos. Trabalham-se os ângulos instituintes da autoridade, das opressões, das modalidades da governação, das interconexões das ações coletivas às ações consigo próprio; das travessias dos engajamentos de proximidade para o espaço público, sem apagar itinerários invertidos, das in – visibilidades dos públicos e das suas des – figurações, das ações que desafiam as jurisdições gerando controvérsias; das formas de qualificação, de desqualificação e de humilhação; das fronteiras e travessias entre ser-se e estar-se vivo e fazer parte de uma comunidade humana comum; daquilo que trazem hoje as desigualdades e as diferenças na composição de um comum no plural…

Como se dá nota passo a passo os esboços dos traços do programa vão ganhando forma não definitiva, mas a formar-se permanentemente. Há outras aberturas nutridas por projetos novos, inovadores que exploram outros terrenos. Falamos do estranhamento do estrangeiramento trazido pelas aparências dos diferentes assinalados a partir de fontes distintas; os desafios das modalidades de cooperação da ação com ou sem economias de mutualidade, de doação, de compaixão; das vulnerabilidades de quem entra no mundo e quem dele está de partida; dos dilemas nas composições das inclusões imperfeitas, dos seus embaraços e mesmo dos seus desligamentos…

A história não termina por aqui. Convida-se quem quiser a percorrer os campos deste sítio. Manuseiem-no como melhor vos convier. Mas façam-no em liberdade e com olhares de lince. Contribuam criticamente para elevar as suas grandezas. Todas são bem-vindas.